Sem
Dono
Naquele espaço que
antevia o esforço que aquela subida, porventura iria exigir na tentativa de a
galgar em passo de corrida sem hipótese para recuperar o fôlego algures no meio
desta, avistei dois jovens javalis e logo atrás, adivinhar pela dimensão, sua
mãe javali. Observei o sentido transportado no olhar daquele corpo grande,
pesado de cor cinza escuro que esta mãe javali evidenciava, naquilo que se crê
ser o sentido de “cuidar” da mãe para com as suas crias.
- Cuidado, diziam-me.
Eles andam fugidos, com certeza vêm fugindo deste cenário incendiário que de
repente se instalou aqui à volta. Não vês o céu ?!!
Continuando a
conversa (porque este acontecimento fez-nos interromper a ideia de subir)
acerca do estado dos incêndios, da fuga das crias e da constatação: Na verdade, nunca se viu tantos javalis como
ultimamente, disseram-me até que se estavam a tornar numa “praga”, como ele
ia avançando na conversa, eu recordava um trabalho que há cerca de 8 anos me
haviam solicitado para a realização dos trabalhos de licenciamento de uma
operação urbanística e candidatura a fundos comunitários de um espaço cuja a
finalidade se destinava aos apoios para a atividade de “ Criação de javalis”.
Naquela altura, lembro-me de ter questionado acerca de tal num entendimento do
objeto a trabalhar que o arquiteto terá de fazer para prosseguir a sua função.
Hoje, considero que este enquadramento foi aliás a razão que potenciou que esse
exercício passasse a ser realizado por outro arquiteto que não eu.
Ora, há 8 anos,
depositava-se no interesse de criar e reproduzir javalis, um objeto merecedor
de início de atividade e inclusivamente elegível de incentivos comunitários,
hoje é “praga”? !!!
Alonguei os meus
pensamentos, enquanto continuava a minha corrida (se calhar numa perspetiva de
atenuação do calor e esforço sentido àquela hora), e pensei ainda nos criadores
de cães raça como puras máquinas de procriar animais de estimação (?!) com raça
pura e bem trabalhada, reparem; um animal de estimação com marca e registo
pedigree, produzidos pelos melhores criadores daquela raça!
Claro está que envolta
nesta linha de pensamento surge aquele sentimento que habitualmente me agoniza
assaltando a minha rotina diária, acerca dos animais abandonados, e agora …até
com os terrenos abandonados, cujo dono muitas vezes não se conhece ou mesmo não
existe, não se evidenciando formas cuidadas na sua existência. Este facto vem
potenciando situações de crise em sociedade, situações de impotência na atuação
das organizações associadas com objetivo de cuidar, ora de animais abandonados
ora das “terras” como muitas vezes se apregoa como causa da calamidade de
ocorrência de incêndios a que assistimos.
Na verdade, a minha
memória rebusca a ideia de sempre ter existido animais sem dono; “ cão vadio” como
diziam lá no lugar. Mas naquele lugar, naquela aldeia ou naquele bairro todos
cuidavam do “cão vadio”. E naquele lugar todos cuidavam uns dos outros. Até, na
altura da vindima esta era feita por todos, uma vez numa terra e outra vez ,
pelos mesmos, noutra terra. A ideia do abandono dotado de uma manifesta falta
de vontade ou até receio em “ cuidar” não existia. Esta ideia atenuava a
leviandade transportada no sentido de propriedade (talvez uma das áreas de
direito mais antiga) pelas coisas, objetos. Repare-se que o direito social
assistiu há poucos meses a uma mudança do enquadramento legal que protege os
animais de estimação (alguns!), agora não são equiparados a objetos.
Pois é, “ Ninguém é
de ninguém”; canta João pedro Pais….
Ouvir dizer: -A minha
casa…., ou -O meu terreno…, ora este é o espaço que habito por um período de
tempo, outros tempos virão e nela(e) habitará outro ser.
Curioso este sentido
de propriedade que o ser humano ousa em apropriar, inclusivamente nas ações
mais voluntariosas e humanitárias que a imagem passa em sociedade. Sobre tal,
deixo apenas mais um episódio no contacto com um determinado “ser” (cão)
abandonado, sem dono portanto, onde um responsável por uma associação de
proteção de animais abandonados , referia que o mesmo não se encontrava na “
Nossa região… e portanto a Nossa associação não pode intervir”. Esta ideia
constante de ouvir pronomes (indicando por si só falta de um nome ) ou ainda na
forma determinada de posse que os Determinantes e Pronomes Possessivos que a gramática
portuguesa nos ensina , transporta-me para a dúvida do direito de propriedade
que vimos assistindo ao longo da história na base de conflitos de vizinhança
dilacerando tudo o que neste Lugar existe. Este é de fato um lugar cheio que
nos foi “emprestado”, apenas temos de cuidar. O que interessa se não tem dono!